Romanos 3.21-26
Mas, agora, se manifestou, sem a
lei, a justiça de Deus, tendo o testemunho da Lei e dos Profetas, isto é, a
justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo para todos e sobre todos os que creem;
porque não há diferença. Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de
Deus, sendo justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em
Cristo Jesus, ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para
demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a
paciência de Deus; para demonstração da sua justiça neste tempo presente, para
que ele seja justo e justificador daquele que tem fé em Jesus.
Declarado Inocente!
"Mas, agora, se manifestou, sem a lei, a justiça de Deus, tendo o
testemunho da Dei e dos Profetas” (3.21). Essa seção que começa em Romanos
3.21 e se estende até 4.25 apresenta o remédio do diagnóstico que Paulo tinha
dado anteriormente para a questão do pecado em Romanos 1.18—3.20. Vimos que
Paulo primeiramente apresentou o mundo pagão totalmente mergulhado nas trevas
do pecado. Por outro lado, a situação dos seus compatriotas judeus não era
diferente. Eles também estavam debaixo do domínio do mesmo pecado. É, pois,
nessa seção que o apóstolo apresentará a solução de Deus para a rebelião do
homem —- a justiça de Deus imputada a todos por Cristo Jesus.
À parte da lei, isto é, sem o
concurso da lei, a justiça de Deus se manifestou para resolver o dilema humano.
Essa justiça divina, que se manifestaria em Cristo Jesus, já era testemunhada
pela própria lei e pelos profetas (v. 21). Primeiramente, a imagem que Paulo
tem em mente aqui é de um tribunal. Alguém que se encontra como réu diante de
um juiz e de quem espera o veredicto condenatório. Todavia, em vez de receber
uma condenação, ele recebe a absolvição.
O expositor bíblico William
Barclay mostra o pano de fundo da doutrina da justificação nessa passagem.
Nesse exemplo de Paulo, imagina-se o homem diante do tribunal de Deus. Barclay
destaca com muita propriedade que a palavra grega traduzida como “justificar” vem
da mesma raiz de dikaiún e que todos
os verbos gregos que terminam em ún
têm o sentido de considerar alguém como
algo e não o de fazer algo a alguém. Dessa forma, se alguém que é inocente
se apresenta diante de um juiz, o juiz, evidentemente, o declarará inocente.
Todavia, o caso mostrado por Paulo aqui é diferente. A pessoa que se apresenta
diante de Deus é totalmente culpada, merecendo a punição do seu erro, porém, o
justo Juiz, em uma demonstração de sua graça infinita, considera-o como se
fosse inocente. Isso é o que se entende do significado da palavra
“justificação” no contexto paulino. Quando Paulo diz “Deus justifica o ímpio”,
significa, dentro do contexto da justificação, que Deus trata o ímpio como
alguém bom. É evidente que tal raciocínio deixou os judeus totalmente
escandalizados. Na mente dos judeus, apenas um juiz iníquo agiria dessa forma,
pois justificar o ímpio é uma abominação para Deus (Pv 17.15); “não
justificarei o ímpio” (Ex 23.7). Todavia, a argumentação de Paulo mostra que é
exatamente isso o que Deus fez.
Na mente de Paulo, observa
Barclay, se alguém desejasse saber como Deus é, então deveria olhar para Jesus,
pois Ele revelou Deus aos homens. O verbo encarnado de Deus veio mostrar o
grande amor de Deus pelos homens, mesmo estes estando mortos em seus delitos e
pecados (Ef 2.1,2). Barclay destaca que “quando descobrimos isso e cremos,
nossa relação com Deus muda radicalmente. Estamos conscientes do nosso pecado,
mas não estamos aterrorizados ou distantes. Quebrantados e arrependidos, recorremos
a Deus como uma criança triste se chega a sua mãe e sabemos que o Deus a quem
chegamos é amor. Isso é o que significa justificação pela fé em Jesus Cristo.
Isso significa que estamos em relacionamento correto com Deus porque
acreditamos sinceramente que o que Jesus nos disse de Deus é a verdade. Já não
somos estranhos que têm medo de um Deus irado. Somos filhos, crianças errantes
que confiam no amor do Pai que os perdoará. E não podíamos nunca chegar a esse
relacionamento com Deus, se Jesus não tivesse vindo para viver e morrer para
nos dizer como maravilhosamente Deus nos ama”.
Escravo Alforriado
“...pela redenção que há em Cristo Jesus” (3.24 b). A palavra
traduzida como “redenção” vem do grego apolutrósis.
De acordo com o léxico grego de Gerhard Kittel, essa palavra tem o sentido de resgate ou pagamento de um regaste,
passando a ser um termo muito importante no Novo Testamento. A história
seguinte ajuda-nos a entender o seu real sentido.
No tempo da escravidão, nos
Estados Unidos, numa movimentada rua de certa cidade, uma multidão de pessoas
concorreu para uma feira de escravos. Amarrados de pés e mãos, aguardavam
compradores.
No meio dos escravos, estava uma
moça de olhar cabisbaixo, triste, pensando na sua condição de escrava. Um
cavalheiro passou, olhou para os escravos e teve profunda compaixão por aquela
escrava, que era tratada como os demais escravos, feito animais. Na hora dos
lances, o cavalheiro ofereceu o dobro. O leiloeiro bateu o martelo, estava
livre, podia gozar de sua liberdade.
Soltaram a escrava e o seu
libertador disse-lhe: “Acompanhe-me”. Com raiva, ela cuspiu na cara do seu
benfeitor. Ele tirou o lenço do bolso, limpou a cusparada. Terminou a parte
burocrática. Pegou os documentos e deu à jovem. Era a carta de alforria. A escrava
estava livre. Com aqueles papéis ninguém conseguiria escravizá-la.
Com os documentos na mão, dizia
quase sem parar: “O senhor me comprou para me libertar?”. Estava livre. Aquele
homem comprou a libertação da jovem escrava. Poderia gozar de sua liberdade. A
nossa escravidão, imposta pelo Diabo, é muito mais grave do que a escravidão
daquela jovem negra. Estávamos nos grilhões do Diabo. Comumente, ele nos levava
pelo caminho do cigarro, das drogas, da prostituição, do furto e do crime. E
esses pecados se refletiam em nossa família, nossos filhos, nosso trabalho. No
cabresto do Diabo, ele nos levava por esses caminhos de sombras, de desilusão,
de amargura, de morte. Matou a esperança em nosso coração. Como aquele
cavalheiro nos Estados Unidos pagou a libertação da jovem, Cristo pagou o preço
da nossa redenção.
O Preço de um Resgate
"... a qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue...
” (3.25). O vocábulo “propiciação” (gr. hilastérion),
comenta Elvis Carballosa, significa sacrifico expiatório. Esse sacrifício
expiatório foi a morte de Cristo em lugar do pecador. A frase “no seu sangue”
se refere à morte de Cristo. A morte de Cristo foi uma realidade histórica.
Romanos 3.27-31
Onde está, logo, a jactância? É
excluída. Por qual lei? Das obras? Não! Mas pela lei da fé. Concluímos, pois,
que o homem é justificado pela fé, sem as obras da lei. É, porventura, Deus
somente dos judeus? E não o é também dos gentios? Também dos gentios,
certamente. Se Deus é um só, que justifica, pela fé, a circuncisão e, por meio
da fé, a incircuncisão, anulamos, pois, a lei pela fé? De maneira nenhuma!
Antes, estabelecemos a lei.
Jesus e o Judaísmo Palestino
“Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé, sem as obras da
lei” (3.28). Nesse ponto, dentro de nosso comentário textual e exegético
desse texto, é preciso fazer referência a um grande debate que nos últimos anos
tem surgido em torno da teologia paulina da graça. Alguns expositores têm
defendido a tese de que Paulo não estaria combatendo o legalismo judaico, isto é,
a salvação pelas obras, mas em vez disso estaria se posicionando apenas contra
o orgulho judaico de pertencer ao povo da aliança.
Os escritos do norte-americano E.
P. Sanders revolucionaram os estudos sobre a teologia paulina quando, em 1977,
publicou seu livro Paulo e o Judaísmo
Palestino. Sanders parte do princípio de que o judaísmo não era uma
religião legalista que pregava a salvação pelas obras. Esse pensamento de
Sanders, denominado de A Nova Perspectiva
sobre Paulo, é radicalmente oposto àquele da tradição cristã histórica. O
livro de Sanders é uma tentativa de provar que a teologia sobre Paulo, que os
reformadores defendiam, não era de fato de Paulo, mas de Agostinho, bispo de
Hipona. O escritor William S. Campbell destaca que “é perceptível, pela leitura
de Sanders, que um debate cristão interno posterior sobre a graça e obras foi
projetado no cristianismo inicial, fazendo com que nosso entendimento das
origens cristãs, em relação ao judaísmo, se tornasse um tanto distorcido. Em
certo sentido, esse é, na verdade, mais um debate sobre a graça dentro do
cristianismo. E esclarecedor observar que foram os escritos antipelagianos de
Agostinho o material que Lutero considerou mais úteis. Para Lutero, Agostinho é
sua autoridade preferida, seu principal aliado na luta contra as tendências
pelagianas do escolasticismo. Mas, em decorrência disso, os judeus são vistos
por Lutero como representantes de um tipo de pelagianismo e, como tal, inimigos
do Evangelho tanto quanto a igreja não reformada”.
Partindo, portanto, desse
princípio, E. P. Sanders se opôs a essa visão dos reformadores. Ao contrário do
que crê o cristianismo tradicional, disse que o judaísmo é uma religião da
aliança em que o status de pertencer
ao grupo eleito, e não a obediência legalista da lei, é a principal
característica. Para Sanders, os judeus não acreditavam que a obediência aos
preceitos legais lhes garantia salvação, mas apenas mantinha seu status dentro do grupo da aliança. Nesse
aspecto, em vez de ser a causa da salvação, a obediência era apenas a condição.
Essa nova perspectiva, Sanders denominou de nomismo
da aliança. Em outras palavras, o erro dos judeus era o de se orgulhar de
pertencer ao povo eleito de Deus, pertencer a aliança que Deus fez com Israel e
não querer agradá-lo por meio das obras.
Outro autor que fez coro com
Sanders foi o britânico James D. G. Dunn que também passou a defender a Nova Perspectiva sobre Paulo. Todavia,
Dunn fez críticas ao modelo de Sanders para implantar o seu próprio modelo.
Dunn afirma que “o Paulo luterano foi substituído por um Paulo idiossincrático
que, de maneira arbitrária e irracional, volta-se contra a glória e a grandeza
da teologia pactuai do judaísmo e abandona o judaísmo simplesmente por que ele
não é cristianismo”. O teólogo presbiteriano Augustus Nicodemus observa que J.
D. G. Dunn nessa nova abordagem sociológica sobre Paulo “tem recebido vasta
aceitação. Para ele, Paulo ataca as ‘obras da lei’ não porque elas expressam
algum desejo de alcançar mérito por parte dos judeus, mas porque entende que
elas fazem uma distinção entre os judeus, o povo de Deus da antiga dispensação,
e os gentios, a quem o evangelho está sendo oferecido. As ‘obras da lei’, que
Paulo identifica como restritas à circuncisão, às leis sobre alimentos puros e
impuros (kashrut) e aos dias
especiais do calendário judaico, são emblemas que caracterizam o judaísmo e
devem ser rejeitadas porque enfatizam a separação entre judeus e não judeus, a
qual Cristo veio abolir”.
Duas coisas precisam ser
observadas aqui. Primeiro, a leitura de Romanos 3.28 mostra claramente que
Paulo não via o problema da rejeição judaica apenas como sendo um orgulho de
pertencer ao povo da aliança. Essa Escritura é clara o suficiente para mostrar
que a busca pelo mérito por meio das obras constituiu-se o principal obstáculo
para um judeu legalista aceitar a justificação somente pela fé. Em segundo
lugar, é um fato que não apenas Lutero, mas outros reformadores depois dele,
beberam do poço doutrinário de Agostinho, como por exemplo, a crença no pecado original
com a consequente doutrina da regeneração batismal, etc. Embora haja
similaridade entre o legalismo judaico e a doutrina da salvação pelas obras de
Pelágio, não é correto fazer a crença luterana na justificação pela fé depender
exclusivamente de Agostinho. Não há como negar que Lutero foi influenciado de
forma negativa por Agostinho, todavia, a própria história da Reforma, com seu
lema “O justo viverá pela fé” (Rm 1.17), revela a grande influência que a Carta
aos Romanos teve na vida e obra do reformador alemão. Não é seguro, portanto,
pelo menos neste caso, fazer a convicção teológica do reformador alemão
depender somente de Agostinho. Por outro lado, é certo e historicamente
provado, como demonstrou Sanders, que Lutero errou ao odiar os judeus ao projetar
neles o erro pelagiano.
Romanos 4.1-25
Que diremos, pois, ter alcançado
Abraão, nosso pai segundo a carne? Porque, se Abraão foi justificado pelas
obras, tem de que se gloriar, mas não diante de Deus. Pois, que diz a
Escritura? Creu Abraão em Deus, e isso lhe foi imputado como justiça. Ora,
àquele que faz qualquer obra, não lhe é imputado o galardão segundo a graça,
mas segundo a dívida. Mas, àquele que não pratica, porém crê naquele que
justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada como justiça. Assim também Davi
declara bem-aventurado o homem a quem Deus imputa a justiça sem as obras,
dizendo: Bem-aventurados aqueles cujas maldades são perdoadas, e cujos pecados
são cobertos. Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não imputa o pecado. Vem,
pois, esta bem-aventurança sobre a circuncisão somente ou também sobre a
incircuncisão? Porque dizemos que a fé foi imputada como justiça a Abraão. Como
lhe foi, pois, imputada? Estando na circuncisão ou na incircuncisão? Não na
circuncisão, mas na incircuncisão. E recebeu o sinal da circuncisão, selo da
justiça da fé, quando estava na incircuncisão, para que fosse pai de todos os
que creem (estando eles também na incircuncisão, a fim de que também a justiça
lhes seja imputada), e fosse pai da circuncisão, daqueles que não somente são
da circuncisão, mas que também andam nas pisadas daquela fé de Abraão, nosso
pai, que tivera na incircuncisão. Porque a promessa de que havia de ser
herdeiro do mundo não foi feita pela lei a Abraão ou à sua posteridade, mas
pela justiça da fé. Pois, se os que são da lei são os herdeiros, logo a fé é vã
e a promessa é aniquilada. Porque a lei opera a ira; porque onde não há lei
também não há transgressão. Portanto, é pela fé, para que seja segundo a graça,
a fim de que a promessa seja firme a toda a posteridade, não somente à que é da
lei, mas também à que é da fé de Abraão, o qual é pai de todos nós, (como está
escrito: Por pai de muitas nações te constituí.), perante aquele no qual creu,
a saber, Deus, o qual vivifica os mortos e chama as coisas que não são como se
já fossem. O qual, em esperança, creu contra a esperança que seria feito pai de
muitas nações, conforme o que lhe fora dito: Assim será a tua descendência. E não
enfraqueceu na fé, nem atentou para o seu próprio corpo já amortecido (pois era
já de quase cem anos), nem tampouco para o amortecimento do ventre de Sara. E
não duvidou da promessa de Deus por incredulidade, mas foi fortificado na fé,
dando glória a Deus; e estando certíssimo de que o que ele tinha prometido
também era poderoso para o fazer. Pelo que isso lhe foi também imputado como
justiça. Ora, não só por causa dele está escrito que lhe fosse tomado em conta,
mas também por nós, a quem será tomado em conta, os que cremos naquele que dos
mortos ressuscitou a Jesus, nosso Senhor, o qual por nossos pecados foi
entregue e ressuscitou para nossa justificação.
A Jornada da Fé
A partir dessa seção, Paulo
introduz a história do patriarca Abraão com um exemplo do seu argumento da
justificação pela fé. Paulo argumenta a partir de Gênesis 15; todavia, acredito
ser oportuno aqui vermos alguns aspectos anteriores da jornada desse gigante
espiritual. Voltemo-nos, pois, ao capítulo 13 de Gênesis para traçarmos o percurso
dessa jornada.
1. Uma jornada para conviver com altares, e
não com pirâmides. “Subiu, pois, Abrão do Egito [a terra das pirâmides]
[...] E fez as suas jornadas do Sul [Neguebe] até Betei, até ao lugar onde, ao
princípio, estivera a sua tenda, entre Betei e Ai; até ao lugar do altar que,
dantes, ali tinha feito; e Abrão invocou ali o nome do Senhor” (Gn 13.1-4).
Abraão saiu do Egito, onde conviveu com as grandes pirâmides, para voltar à
Palestina, terra onde construíra altares. Deus quer o fiel convivendo com
altares, e não com pirâmides.
2. Uma jornada onde a visão deve ser maior
do que a ambição. “E houve contenda entre os pastores do gado de Abrão e os
pastores do gado de Ló [...] E disse Abrão a Ló: Ora, não haja contenda entre
mim e ti e entre os meus pastores e os teus pastores, porque irmãos somos” (Gn
13.7,8). A ambição, o orgulho e o desejo de ter são agentes causadores da
quebra da unidade fraternal, mas a busca da koinonia
é o remédio para esse mal. A luta por espaço arranhou o relacionamento entre os
pastores de Abraão e Ló. Evidentemente que isso estava tendo consequências
entre o tio e o sobrinho. E melhor abrir mão de alguma coisa do que permitir
que venha a arranhar a comunhão fraternal.
3. Uma jornada que não pode ser seduzida por
uma imitação do Paraíso nem pelas lembranças do Egito. “E levantou Ló os
seus olhos e viu toda a campina do Jordão, que era toda bem regada, antes de o
Senhor ter destruído Sodoma e Gomorra, e era como o jardim do Senhor, como a
terra do Egito, quando se entra em Zoar” (Gn 13.10). Ló se deixou seduzir por
uma lembrança do Paraíso, todavia Abraão procurou viver a realidade nua e crua
de uma vida de fé. As campinas de Sodoma lembravam o Paraíso, mas não eram o
Paraíso. Às vezes, o crente se deixa iludir pelas aparências e em vez de
procurar o caminho mais seguro, busca os atalhos.
4. Uma jornada que se aproxima de Canaã e se
afasta de Sodoma. “Habitou Abrão na terra de Canaã, e Ló habitou nas
cidades da campina e armou as suas tendas até Sodoma” (Gn 13.12,13). Enquanto Ló
se aproximava de Sodoma, do pecado, Abraão se distanciava cada vez mais dele.
Impulsionado pelos atrativos, Ló se aproximava cada vez mais dos encantos de
Sodoma. Foi uma sedução que, posteriormente, lhe custou muito caro. Por que em
vez de se afastar de Sodoma muitos se aproximam cada vez mais?
5. Uma jornada onde a exclusividade
determina a intimidade. “E disse o Senhor a Abrão, depois que Ló se apartou
dele” (Gn 13.14). Às vezes precisamos nos separar de determinadas coisas, até
mesmo de pessoas, se queremos ouvir a voz do Senhor. Não dá para conviver com
quem gosta de Sodoma.
6. Uma jornada onde Deus mostra o futuro,
mas é o homem quem constrói o presente. “Levanta, agora, os teus olhos e
olha desde o lugar onde estás, para a banda do norte, e do sul, e do oriente, e
do ocidente; porque toda esta terra que vês te hei de dar a ti e à tua semente,
para sempre. [...] Levanta-te, percorre essa terra, no seu comprimento e na sua
largura; porque a ti a darei. E Abrão armou as suas tendas, e veio, e habitou nos
carvalhais de Manre, que estão junto a Hebrom; e edificou ali um altar ao
Senhor” (Gn 13.14-18). Deus revela o futuro, mas somos nós quem construímos o
presente. É preciso haver deslocamento. Começar e recomeçar sempre. Deus faz
promessas e as cumpre, mas é preciso ter paciência, encarar as incertezas do
presente para chegar às garantias do futuro.
7. Uma jornada onde pessoas são mais
importantes do que coisas. “Também tomaram a Ló, que habitava em Sodoma,
filho do irmão de Abrão, e a sua fazenda e foram-se. [...] não tomarei coisa
alguma de tudo o que é teu; para que não digas: Eu enriqueci a Abrão” (Gn
14.12,23). Abraão era rico, mas não punha nas riquezas a sua confiança. O
importante para ele era a comunhão com o seu Deus.
8. Uma jornada onde Abrão aprendeu que era
grande, mas não o maior. “E Melquisedeque, rei de Salém, trouxe pão e
vinho; e este era sacerdote do Deus Altíssimo. E abençoou-o e disse: Bendito
seja Abrão do Deus Altíssimo, o Possuidor dos céus e da terra; e bendito seja o
Deus Altíssimo, que entregou os teus inimigos nas tuas mãos. E deu-lhe o dízimo
de tudo” (Gn 14.18,20; Hb7.1-10). Mesmo sendo um homem grande, Abraão
reconheceu que havia alguém ainda maior. Melquisedeque é um tipo de Cristo, e o
velho patriarca aprendeu desde sempre a depender da fé nEle.
Pois bem, voltemos ao texto.
O texto de Romanos 4.1-25, como
vimos, trata com exclusividade da vida do velho patriarca Abraão. A exegese
feita por Paulo nessa passagem mostra, a partir do livro de Gênesis, que a
justificação de Abraão não se deu em decorrência das obras, mas da fé. Nesse
aspecto há uma similaridade entre a fé de Abraão e a fé do cristão. Lucien
Cerfaux sintetizou bem essa analogia usada por Paulo. Dentro dessa passagem de
Romanos é possível perceber com clareza Paulo fazendo a ligação entre a justiça
de Abraão, Cristo e a justiça do cristão.
“Pois, que di% a Escritura? Creu Abraão em Deus, e isso lhe foi
imputado como justiça” (Rm 4.3). Paulo toma como ponto de partida de seu
argumento Gênesis 15.6, onde Deus fez a promessa a Abrão de lhe dar uma
posteridade numerosa. O judaísmo acreditava que Abraão havia sido justificado
em consequência do rito da circuncisão, o que Paulo vai negar. Paulo observa
que Deus justificou o patriarca em consequência da sua fé, que aconteceu muito
antes da prática da circuncisão. Dessa forma, como mostra Romanos 4.4, Abraão
não poderia ter sido justificado pelas obras, mas pela fé. A sua justificação
foi uma dádiva, e não uma dívida.
O expositor Lucien Cerfaux destaca
que “Paulo exalta a fé de Abraão, emoldurando-a de maneira mais determinada com
a fé dos cristãos, cujo objeto principal é a ressurreição de Cristo. Abraão
crera em Deus ‘que dá vida aos mortos e, chamando-as, fa2 existir as coisas que
não existiam’ (Rm 4.17). Paulo explica seu modo de pensar: ‘E sem vacilar na
fé, não considerou nem o seu corpo, já sem vitalidade, por ser quase
centenário, nem a falta de vigor do seio de Sara; nem hesitou por falta de fé,
perante a promessa de Deus, antes hauriu força na sua fé, dando gloria a Deus’
(Rm 4.19). Notem-se as expressões ‘morte’ (o corpo de Abraão, o seio de Sara
estão mortos) e ‘dar vida’. E a antítese morte-ressurreição. A fé de Abraão
constitui o primeiro esboço da fé cristã; pela maneira com a qual a formula,
suspeita-se que Paulo a encara como um ‘tipo’ de fé na morte e ressurreição de
Cristo”.
“Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não imputa o pecado” (Rm 4.8).
Seguindo um dos princípios hermenêuticos (Gezerah
Sahawah) da escola rabínica de Hillel, faz um paralelo entre Salmos 32.1 e
Gênesis 16.6. O propósito do apóstolo é interpretar Gênesis 15a partir do Salmo
32. “O fato de Abraão ter sido considerado justo, de ter-lhe sido atribuída
justiça diante de Deus (Gn 15.6), significa que Deus não contou, atribuiu seus
pecados contra ele (SI 32.1,2), com referência ao perdão divino dos pecados de
adultério e homicídio cometidos por Davi [cf. 2 Sm 11]. Tudo isso significa que
Abraão foi justificado diante de Deus, pela fé e não por obras. De fato, Abraão
era um pecador cuja única esperança era a graça de Deus recebida pela fé”.
Na argumentação de Paulo, ficam,
portanto, os fatos:
1. Quando Abraão foi justificado, era ainda incircunciso. Isso
significa que Abraão seria o pai de todos os que haviam de crer sem estar
circuncidados (incircuncisos), e assim fosse creditada a justiça também a eles.
2. A circuncisão foi dada após, como “sinal” (segundo Gn 17.1 Oss),
isto é, como sinal da justiça da fé que ele havia recebido sendo ainda
incircunciso. Isso significa que Abraão seria o pai de todos circuncisos,
isto é, daqueles que não se limitam à circuncisão, mas que, além disso, seguem
na esteira da fé que, ainda incircunciso, possuía nosso pai Abraão (Rm 4.11).
Autor: Jose Goncalves
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